quarta-feira, 11 de março de 2009

Estão a assassinar o português... I

Magalhães tem tantos erros que "è" difícil "contar-los" - Filipe Santos Costa

O Ministério da Educação incluiu no computador Magalhães jogos educativos cujas instruções em português são um festival de erros. Ortografia, sintaxe, gramática - nada resiste ao 'magalhanês'.

Lê-se e não se acredita. "Neste processador podes escrever o texto que quiseres, gravar-lo e continuar-lo mais tarde", lê-se nas instruções do processador de texto - isso mesmo: "gravar-lo e continuar-lo". "Dirije o guindaste e copía o modelo", explicam as instruções de um puzzle - "dirije" com "j" e "copía" com acento no "i". "Quando acabas-te, carrega no botão OK" - "acabas-te", em vez de "acabaste". Tudo isto se pode ler nas instruções dos jogos que vêm instalados de origem no computador "Magalhães", o orgulho do Governo de Sócrates.

Se tem em casa um "Magalhães", confirme: ao iniciar o computador, escolha o ambiente de trabalho Linux (Caixa Mágica 12 Mag). No menu, vá aos jogos - por ironia, estão no ícone "Aprender". Em cada jogo, leia as instruções (o ícone é um ponto de interrogação). Foi isso que fez esta semana o deputado José Paulo Carvalho - o que descobriu deixou-o perplexo.

Os erros são às dezenas (o Expresso encontrou mais de 80, e a certa altura deixámos de contabilizar erros repetidos) e para todos os gostos. Há gralhas evidentes ("attentamente") e erros imperdoáveis. "Encontra-las" e "encontras-te", em vez de "encontra-as" e "encontraste"; "contar-los" em vez de "contá-los"; "caêm" em vez de "caem"; "contéem" em vez de "contêm"; ou ainda a incrível conjugação do verbo fazer - "fês" em vez de "fez". Num jogo somos instruídos a mover "um disco de cada vês", noutro devemos "carregar outra vês no chapéu" (no "Magalhães", "vez" tem relação com o verbo ver). No xadrez, a vez das peças brancas é o "torno dos brancos".

Ao pé destes casos, é quase pecado venial o desprezo por vírgulas e acentos. Há acentos que faltam ("historia", "sitio", "agua"...), outros estão onde não deviam (sobretudo nos advérbios de modo: "básicamente", "fácilmente"), há acentos graves onde deviam ser agudos ("á direita", "ás actividades").

Numa língua aparentada com o português, encontramos frases como esta: "O objectivo do quebra-cabeças é de entrar cifres entre 1 e 9 em cada quadrado da grelha" (nas instruções do sudoku). Ou esta, na explicação do tangram, um quebra-cabeças chinês: "Quando o tangram for dito frequentemente ser antigo, sua existência foi somente verificada em 1800". E ainda esta pérola: "Carrega em qualquer elemento que tem uma zona livre ao lado dele, ele vai ir para ela."

"Magalhanês"
Este português macarrónico está nos computadores pessoais que já foram entregues a mais de 200 mil crianças do primeiro ciclo (ainda estão 150 mil à espera) e até foram oferecidos por Sócrates aos chefes de Estado e de Governo dos 22 países presentes na última cimeira ibero-americana. A 23 de Setembro, ao entregar os primeiros "Magalhães", Sócrates não escondia o orgulho: "O dever de um Governo é proporcionar uma boa educação. Foi por isso que avançámos com este projecto".

O deputado José Paulo Carvalho denuncia estes "erros grosseiros de ortografia, gramática e sintaxe" num requerimento que entregou ontem na Assembleia da República. No documento, a que o Expresso teve acesso, o ex-parlamentar do CDS (actualmente deputado não inscrito) questiona Maria de Lurdes Rodrigues sobre o que chama o "novo idioma oficioso do Ministério da Educação (ME): o 'magalhanês'".

José Paulo Carvalho deixa muitas questões ao ME. Vão ser substituídos os programas informáticos instalados nos computadores já entregues às crianças? Quando? Como? Quem suportará os custos dessa operação? O Ministério considera que esta situação é da sua responsabilidade? Se não, quem é responsável? "O Ministério da Educação efectuou alguma avaliação dos conteúdos do 'Magalhães', ou limitou-se a distribuí-lo e promovê-lo sem mais? Se fez essa avaliação aos conteúdos, como é possível que erros tão grosseiros e repetidos não tenham sido detectados?" E pede uma auto-avaliação ao ME: de 0 a 20, que nota daria a estes textos?



Especialistas arrasam Ministério da Educação
Os linguistas acham inconcebível o sucedido e denunciam a precipitação e negligência com que o Ministério vem trabalhando

A Sociedade de Língua Portuguesa diz que os erros no Magalhães são "o espelho da desorganização e negligência de um órgão com grandes responsabilidades na educação dos jovens". Ao Expresso, a presidente da direcção, Elsa Rodrigues dos Santos, afirmou que "o tratamento destes textos foi feito por quem não conhece minimamente a língua portuguesa. Incumbia ao Ministério da Educação a tarefa de rever e dar a redacção correcta. Não o fez, colocando-se numa posição inadmissível".

Os comentários dos especialistas às dezenas de erros detectados no computador que é a menina dos olhos do Governo são unânimes. Todos denunciam insuficiências inadmissíveis no domínio da língua portuguesa em sede do próprio Ministério da Educação, tutelado por Maria de Lurdes Rodrigues.

José Mário Costa, director do Ciberdúvidas e autor do programa da RTP 'Cuidado com a Língua!', lamenta que tal possa ter acontecido, mas não estranha: "Só expõe o défice de português que existe nos meios da tradução. Frequentemente, são pessoas que dominam línguas estrangeiras mas têm uma relação espúria com o idioma nacional". E lembra que isso se verifica nas "traduções calamitosas que infestam os produtos audiovisuais, quer nas legendagens para cinema quer nas televisões".

Os erros do Magalhães são tantos que assustam: os pretéritos perfeitos (encontraste) passam a presentes do indicativo em conjugação reflexa (encontras-te), os advérbios de modo aparecem na ultrapassada forma com acento: 'obrigatóriamente'. Mais exemplos podem ser cotejados nesta página no artigo de cima.

Ana Martins, professora de Português e da direcção do Ciberdúvidas, detecta a tradução automática do castelhano, "à qual não se seguiu qualquer tipo de revisão, ou simples leitura por um falante de português, mesmo sem ser especialista, (...) provoca perturbação da aquisição da ortografia e sintaxe, mas também efeitos no agravamento da negligência e condescendência vigentes face à competência ortográfica".

António Loja Neves



Governo manda escolas retirar jogos
Ministério da Educação vai pedir a todas as escolas que retirem dos Magalhães dos alunos o software que contém dezenas de erros ortográficos. E vai ser solicitado à JP Sá Couto, empresa fabricante, que na próxima produção de portáteis não inclua estes jogos, informou ontem Teresa Evaristo, subdirectora da Direcção-Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC), depois de confrontada com os erros.

É à DGIDC, tutelada pelo Ministério da Educação, que compete analisar o software inserido no Magalhães. O que acontece, explica Teresa Evaristo, é que não há capacidade para verificar todos os conteúdos: "Nós analisamos o interesse educativo, se são adequados à idade, programa e currículo. Tivemos a preocupação de ver os menus iniciais deste programa, mas não vimos as instruções (onde estão os erros)".

"Houve coisas que escaparam ao nosso controlo de qualidade, porque, ao contrário da Microsoft, não somos 10 mil, mas apenas dez a trabalhar na Caixa Mágica", justifica, por sua vez, Paulo Trezentos, director técnico desta empresa, encarregado da adaptação para Portugal do sistema operativo Linux em 2000 e actualmente responsável pela integração no Magalhães do software produzido por outros. "Todo o software tem erros. O que decidimos fazer foi melhorar as aplicações disponíveis, nomeadamente através de actualizações que ocorrem sempre que o Magalhães se liga à Internet". É o que vai acontecer também neste caso.

José Sócrates tem-se associado desde o início ao projecto Magalhães, mas, quando confrontado pelo Expresso com os erros de português, o seu gabinete descartou responsabilidades: "O Magalhães é um programa de sucesso fantástico, ganha prémios e é um caso exemplar em termos mundiais, por isso o primeiro-ministro se associou a ele. Agora, questões concretas sobre conteúdos e eventuais deficiências, isso é com o Ministério da Educação e o das Obras Públicas", disse Luís Bernardo, do gabinete de imprensa. Educação e Obras Públicas são os dois ministérios que coordenam o projecto e-escolinhas.

Tradutor tem a quarta classe

O tradutor da versão portuguesa do software tem quase as mesmas habilitações que as crianças que utilizam o Magalhães: José Jorge tem a 4ª classe e vive em França desde os 10 anos. "O problema da tradução é que nenhum português de Portugal se dedicou a ela", lamenta o emigrante. José Jorge diz que "ninguém até hoje" reviu a versão que ele criou. O software educativo da GCompris está disponível na net e pode ser actualizado por qualquer cibernauta.

Isabel Leiria, Joana Pereira Bastos e F.S.C.

Texto publicado na edição do Expresso de 7 de Março de 2009

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